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TRAVESSIA DO OCEANO ATLÂNTICO


 Autor:Alessandra 


No dia 25 de novembro de 2018, partimos de Las Palmas, em Gran Canaria em direção a Santa Lúcia, no Caribe. Uma navegada de 2.800 NM, a maior distância que percorremos sem paradas, até agora.
Foram 20 dias no meio do mar, apenas nós 4: Márcio(48), Alessandra(46), Henrique(18) e Carolina(14).
Um verdadeiro teste para nossas habilidades como navegadores e para nosso relacionamento como família.
Nossa rotina diária consistia em revisar todos os cabos e estaiamento buscando por desgastes anormais,
  manter um controle sobre a navegação e regulagem das velas,observar a quantidade de água consumida e produzir água sempre que necessário. 
Revisar o estoque de frutas e legumes, 
preparar as refeições, 
ler, estudar (Carolina),praticar yoga (Ale) assistir algum filme que tínhamos baixado na Netflix, descansar o máximo possível durante o dia e fazer os turnos durante a noite.
Já nos primeiros dias nos surpreendemos em como entramos rápido na nova rotina. Talvez por já estarmos vivendo no barco há quase um ano, talvez por já termos a experiência de uma travessia de vários dias (que foi a travessia entre Gibraltar e Ilhas Canárias – 650 NM). Praticamente não tivemos nenhum problema com enjôo. A Carol ficou um pouco enjoada algumas vezes, mas nem precisou tomar nenhum remédio.
Eu, tomei um comprimido de Stugeron 25mg no dia da largada, mas não precisei tomar mais nada durante toda a travessia.Com relação às revisões de cabos, procuramos fazer a checagem diária e durante toda a travessia encontramos alguns pontos de desgaste, principalmente no cabo do primeiro rizo da vela grande. O Márcio cuidava para trocar os pontos de atrito de posição e cobrir as regiões desgastadas com uma fita própria para isso.
Também cuidamos muito com os cheques de estaiamento. Fazíamos isso diariamente para evitar qualquer surpresa. 
Durante os seminários da ARC, falaram que estatisticamente, sempre tem um barco que perde a retranca, um que bate em uma baleia e um que perde ou quebra o mastro. 
Tudo isso se confirmou nessa travessia...
Com relação às velas, estávamos tranquilos, pois todas as nossas velas são novas.
 Temos uma vela grande, uma Genoa e uma Code Zero. Usamos as velas conforme o vento e fizemos uma armação com duas velas de proa com a genoa e a Code Zero nos dias de pouco vento. 
Procuramos não manter a code zero durante a noite por ser uma vela muito grande e também procuramos nos antecipar às condições de vento, diminuindo o pano sempre que víamos que o vento estava aumentando muito. Mesmo assim, no terceiro dia colocamos a Code Zero na água duas vezes. O problema foi com uma das escotas que se soltou somado ao cabo do enrolador que escapou do tambor.
Mas tudo foi resolvido e a lição aprendida: tirar a vela antes do vento aumentar demais.
A água de bebida nós “fabricávamos” quase que diariamente. Usar a água do water maker poupa espaço para estocar água e produz bem menos plástico. A gente tinha 4 bombonas de 5l com uma bombinha acoplada na garrafa de água.
Mesmo assim mantivemos um estoque de água reserva para o número de dias previsto para a travessia. Essa água não é usada, é guardada apenas para casos de emergência, como contaminação dos tanques de água ou no caso de haver algum problema com o water maker, (como uma pane, por exemplo). Felizmente tudo funcionou perfeitamente.
No décimo primeiro dia de travessia nosso gerador parou de funcionar. E, apesar de todas as tentativas e muito estudo do manual Fisher Panda, ele não voltou a operar.
Começamos a ter um problema novo: precisávamos economizar mais água, pois o dessalinizador só funcionaria quando ligássemos o motor. E precisávamos economizar muita energia para ligar o motor o mínimo possível!!
Até então, tínhamos ligado o motor pouquíssimas vezes, tínhamos ficado mais de 2 dias sem ligar o motor nenhuma vez!
Agora tínhamos que ligar os motores por pelo menos 3h cada um, todos os dias, para que as baterias fossem carregadas.

Com a perda do gerador, precisamos tomar algumas medidas para economizar energia. A primeira delas foi desligar o Freezer. Tínhamos alguns Kg de carne e muitas frutas , verduras e feijão congelado. A carne e parte das frutas foram deslocadas para o pequeno congelador da nossa geladeira. Durante alguns dias todos tomamos vários Smoothies geladinhos e conseguimos preparar todo o feijão e não perder nada. Alguns legumes cozinhei e preparei conservas (como alcachofra e champignon) que duram mais.

A questão do provisionamento funcionou muito bem. O estoque de grãos, farinha, açúcar, latas e outros alimentos não perecíveis foi grande. Pensamos nas quantias que usaríamos na travessia e também em um estoque para durar os primeiros meses no Caribe. A gente já tinha idéia que esses alimentos seriam mais caros e mais difíceis de encontrar por lá.
Alimentos frescos, como frutas e verduras foram calculados de acordo com o tempo de duração do alimento multiplicado pelo número de dias. Assim, tivemos laranjas, limões, maçãs até a chegada em Santa Lúcia e tivemos Abacates, mangas e Caquis até o décimo segundo dia de travessia, por exemplo.
Perdemos poucos alimentos. Todos os dias a gente revisava tudo e levava para consumo os que estavam maduros, mantendo em lugar escuro, seco e arejado os demais alimentos.
Existe uma continha para calcular a quantidade de alimentos para levar:
Quantidade do alimento usado/semana X número de semanas que dura a travessia  + 50% do valor total  + 1 semana.
Assim, se usarmos 500g de lentilhas por semana e a travessia dura 3 semanas, a conta fica assim:
500 X 3 = (1500) + 50% (750) + 1 semana (500)
1500 + 750 + 500 = 2750g de lentilhas, que arredondamos para 3Kg

Nossa rotina alimentar era mais ou menos assim: no café da manhã era “cada um por si”, mas eu e o Márcio geralmente tomávamos café juntos.
Almoço todos juntos .
Jantar cedo, todos juntos e sempre deixava uma sopa pronta para a madrugada.

Estar em um catamarãn proporciona alguns luxos, como ver filmes à tardinha com direito a pipoca e tudo!!
Os turnos funcionaram assim: durante o dia todos faziam turnos de cerca de 3h, exceto eu, porque cozinhava todas as refeições. A partir das 22h começavam os turnos da noite. Nós preferimos manter os horários fixos. A Carol fazia o primeiro turno entre 22h e 24h, eu fazia o turno das 24h às 2h, Henrique das 2h às 4h e Márcio das 4h às 6h. O Márcio sempre acabava ficando até às 7h ou 8h, horário que eu acordava e assumia de manhã, enquanto ele descansava um pouco.
De manhã eu também aproveitava para praticar yoga. Criei uma série para praticar mais sentada, sem posturas que exigissem equilíbrio, por causa do balanço do barco.
Tivemos muito cuidado para que ninguém se machucasse. Todos usávamos colete salva vidas durante os turnos e cinto de segurança em toda e qualquer manobra. Usamos também uma sapatilha para andar sobre o convés e assim evitar o risco de chutar alguma coisa (um dos acidentes mais comuns em barcos)
Além disso, cuidei para que quem estivesse trabalhando no fogão estivesse sempre usando o avental. Acidentes com água fervente ou respingos de óleo quente podem causar queimaduras graves.
 No dia 18 de dezembro, recebemos um e mail da ARC, avisando que um barco havia perdido o mastro e precisava de combustível. Nós e outro barco éramos os mais próximos do veleiro. Fizemos as contas e vimos que, mesmo tendo que usar o combustível para produzir energia e água, ainda sobraria o combustível extra que estávamos levando em 5 camburões. Tínhamos 100 litros de diesel para entregar ao barco sem mastro.
Começou então uma operação tentando descobrir a posição do barco e tentar entrar em contato com eles. A ARC tinha apenas a posição do Yellow Brick a cada 4h.  A última posição informada havia sido há 2h. Então fizemos uma projeção de onde eles estariam. Nos baseamos na proa que estavam mantendo e nas coordenadas fornecidas.
Após algumas horas, conseguimos contato via rádio com o barco (Garuda). Paramos o barco e deixamos que eles chegassem até nós. A gente não sabia, mas eles estavam com problemas no leme também. E nós não conseguíamos avistar o barco com o binóculo. Eles nos viam, por causa das velas, mas nós, mesmo olhando para a posição passada pelo rádio, não os víamos de jeito nenhum. Combinamos com eles para que lançassem um sinalizador. Fizemos contagem regressiva , olhamos para a posição e a muito custo vimos a pequena fumaça cinza no horizonte. Imeditamente voltamos o Biguá na direção deles: Encontramos o Garuda!
O barco, de 50 pés parecia bem pequeno no meio das ondas, e sem o mastro, chegava a sumir entre uma onda e outra.
Enquanto a gente esperava e procurava pelo barco, pensamos muito em como iríamos transferir os camburões.
Optamos por jogar um cabo na água, deixar a outra ponta com 2 galões amarrados e só liberar os galões depois que eles estivessem com a outra ponta do cabo nas mãos. Foi uma operação difícil, mas deu certo. Na segunda vez transferimos os outros 3 galões.
Em meio a tudo isso, entre os 2 barcos, surgiu uma baleia. Foi um momento incrível para todos nós. Na primeira vez nós meio que suspendemos o que estávamos fazendo e ficamos todos apenas observando, sem acreditar.
Depois retomamos a operação, mas ela passou diversas vezes entre os barcos, sumindo embaixo do casco do Biguá e reaparecendo do outro lado, para começar o processo outra vez.
Essa operação fez com que nossa travessia durasse quase um dia a mais do que o previsto. Mas, para nós, foi uma experiência engrandecedora. Todos aprendemos muito. Certamente não nos esqueceremos daquele dia.
O vídeo mostrando como foi é este aqui:
Depois desse dia, ainda continuamos com nossa rotina até chegar em Rodney Bay – Santa Lúcia.
Chegamos de madrugada, às 02:50 cruzamos a “Finish Line”.



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